Qual é a história que o espaço público da sua cidade conta? Quem são as pessoas homenageadas em monumentos espalhados por ela? Questões como estas levaram a uma série de insurgências nos últimos anos em diversas cidades. As noções de memória e representatividade ampliaram a reflexão sobre qual narrativa construímos em nossos espaços, fato que tem desencadeado numa indagação urbana para o futuro: afinal, o que queremos lembrar (ou esquecer) através dos símbolos que erigimos (ou destruímos) nas cidades?
Transformar personagens ou fatos históricos em monumentos tende a contribuir com discursos que são ditos heroicos, temas que são considerados dignos de adentrar no imaginário coletivo ao serem vistos diariamente durante os trânsitos pela cidade. No entanto, o que de fato eles representam? Em São Paulo, por exemplo, dos 199 monumentos com formas humanas, 169 retratam formas masculinas das quais 137 seriam pessoas brancas¹, demonstrando a discrepância perante figuras femininas ou de outras raças.
Representatividade é uma palavra fundamental para compreender o motivo pelo qual os movimentos sociais tem se engajado cada vez mais perante os símbolos que constituem uma cidade e o que eles de fato retratam ao coletivo. Se a representação universal é utópica, é necessário que os discursos de diferentes coletivos consigam transformar o pensamento a fim de revolucionar o modo como vemos, interagimos e construímos os locais de memória e monumentos no espaço público: quando o discurso se concretiza em objeto.
O crítico alemão Andreas Huyssen já levantava a curiosidade acerca de países com culturas pautadas por um deliberado anti-monumentalismo antifascista recorrerem às dimensões monumentais durante a década de 1990². Afinal, por que adotar a escala monumental para tentar se redimir de algo que a utilizava como ferramenta? Felizmente, a resposta para a "sedução monumental" colocada pelo autor parece estar chegando a um fim e entre as vicissitudes da memória, a linguagem comum de um monumento e o que ele costuma representar, parece estar com os dias contados na construção simbólica das cidades.
Com a derrocada dessa linguagem, vem o desafio de como espacializar a narrativa sem homogeneizar discursos, visto que não há como neutralizar a cultura. Na tentativa de um discurso em busca do "neutro", alguns podem até indagar que questionar o fato de que apagar a memória do opressor também apaga a memória do oprimido. Uma questão que se levanta pautada por uma falsa assimetria, pois proporcionalmente a quantidade de monumentos dado a personagens que se tornaram "heróis" - exatamente pela opressão a outros povos e culturas - perante outros grupos que são invisibilizados no espaço é muito maior. Ou simplesmente a prioridade dada apenas ao homem branco, como é visto no caso de São Paulo e na maior parte das cidades ocidentais, demonstra como numa disputa narrativa, os opressores ou pessoas que estão no poder possuem uma vantagem muito maior, pois dominam as zonas públicas ao mesmo tempo que manifestam a história de suas "vitórias" e conquistam, assim, também o imaginário coletivo.
Essa imensa quantidade de memoriais e homenagens ao passado reforçam e glorificam episódios de grande violência dos séculos anteriores. Em busca de um reequilíbrio ou uma maior discussão em torno da hegemonia posta por essas obras, diversas intervenções tem sido feitas, ao ponto de destruí-las. Episódios que colocaram em pauta a questão sobre qual é o lugar que elas devem ocupar e se devem existir na cidade.
Alguns exemplos já despontam trazendo diferentes modos de lidar com o trauma que essas imagens podem causar. Existem correntes que defendem a construção de contra-monumentos ou ainda monumentos horizontais, que se opõem a imposição dada por um escultura, vertical e fálica, que usa de sua altura para pontuar um dogma no contexto inserido. Um exemplo deste caso é o Homomonument, realizado em Amsterdã como espaço de resistência e homenagem à população LGBTQIA+.
Outra possibilidade além da destruição, está em levar esses monumentos para um museu ou parques no quais suas histórias possam ser mantidas e contextualizadas, de forma que eles deixam de ser uma verdade implícita e unilateral. Ou, ainda, atualizá-los a fim de levantar novas questões simbólicas e que tensionem a realidade que essas imagens insistem em marcar, como fez o artista indígena Denilson Baniwa ao intervir no Momumento às Bandeiras, em São Paulo, com a obra Brasil Terra Indígena.
Segundo Hélio Menezes, curador da mostra Vozes Contra o Racismo, que constava a obra, "mesmo na tentativa do esmagamento literal e simbólico que o monumento apresenta e através dos processos de exclusão da cidade, que são bastante racializados, cenários e seres que são afastados e excluídos da cidade são reprojetados em imagens sobre o concreto que a constrói". No caso da obra citada, "imagens de plantas, seres espirituais, animais primordiais indígenas - que nas palavras do próprio Baniwa continuam vivendo ali, apenas não estão no plano do visível - sobem vagarosamente sobre o monumento apagado, que se torna mal discernível pelos contornos do objeto escultórico". Sendo assim, uma imagem que representa uma memória extremamente violenta é momentaneamente apagada para se tornar pano de fundo para uma nova mensagem que enaltece tudo aquilo que os homenageados da escultura violentaram no passado.
É certo que uma única intervenção não desfaz todo o poder de uma escultura que perpetua o imaginário coletivo por décadas, mas através de ações e debates em torno do monumento, é possível atualizar seus significados e trazer novas reflexões para a memória coletiva para, assim, transformar o futuro. Tudo isso, passando pela retirada deles ou não.
Hoje, diversas cidades se esforçam para conceber algumas reparações históricas, ou seja, reconhecem um passado de erro e buscam através de atos intencionalmente públicos demonstrar um desejo de mudança e retratação perante o passado. E, nesse sentindo, a discussão em torno da monumentalização e a disputa pelo campo da memória faz parte do processo de denúncia que tem levado a essa atitude. Afinal, esses lugares de memória vão além da identidade de uma única pessoa, e isso permite que entre os possíveis conflitos que eles narram, exista um favorecimento de interlocuções que atravessam diversas camadas para achar um lugar comum que busca horizontes de uma cidade mais democrática.
¹ Dados retirados da pesquisa "Quais histórias as cidades nos contam? A presença negra nos espaços públicos de São Paulo" realizada pelo Instituto Pólis em novembro de 2020.
² HUYSSEN, Andreas. Sedução Monumental. In: HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p. 41-66.
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